Longe do Centro, moradores da Favela do Moinho falam sobre desafios do recomeço em imóveis financiados pela CDHU
14/05/2025
(Foto: Reprodução) A realocação de moradores começou no fim de abril e já mudou a rotina de 181 famílias, que deixaram o terreno até esta terça (13). Dessas, apenas quatro já se mudaram para moradias definitivas. Moradora da Favela do Moinho se muda para unidade do CDHU na Zona Leste de SP
Renata Bitar/g1
Em meio à disputa entre o governo do estado e o crime organizado pelo controle da Favela do Moinho, no Centro de São Paulo, centenas de famílias terão de recomeçar suas vidas no processo de desocupação da comunidade — que deve dar lugar a um parque, no que depender da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Nesta reportagem você vai entender:
A saída do Centro;
Resistência e protestos;
Infiltração do crime organizado.
A realocação de moradores começou no fim de abril e já mudou a rotina de 181 famílias, que deixaram o terreno até esta terça-feira (13). A maioria delas optou por receber um auxílio-aluguel de R$ 800 até encontrar uma moradia definitiva; apenas quatro já se mudaram para apartamentos financiados pela CDHU, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do estado.
Este é o caso da auxiliar de limpeza Francisca Lima, de 42 anos. Ela e as duas filhas mais novas viveram os últimos cinco anos no Moinho, numa casa com dois cômodos e um banheiro que por muito tempo não teve água encanada. O aluguel de R$ 600 foi o que atraiu a família para a comunidade, no início da pandemia.
A mulher contou ao g1 que se cadastrou na CDHU há mais de uma década, quando ainda vivia numa ocupação, também na região central. Contudo, só conseguiu acesso a um imóvel financiado depois que o governo deu início ao plano de desocupação do Moinho.
Apesar da demora, Francisca disse que o novo lar é uma "bênção".
Prédio na Zona Leste de SP que recebeu famílias realocadas da Favela do Moinho
Renata Bitar/g1
Ela chegou a pesquisar apartamentos no Centro, mas os altos custos a levaram para a Cidade Líder, na Zona Leste, a mais de 20 km de distância de seu atual emprego, o que a faz considerar a possibilidade de buscar um novo trabalho.
🔍 Das 1.047 unidades habitacionais na região central que a CDHU afirma ter ofertado aos moradores do Moinho, apenas 68 estão prontas para ocupação imediata. As demais seguem em obras, segundo informações da própria companhia.
No condomínio, Francisca ainda não possui uma rede de apoio para ajudá-la no cuidado com as crianças ou quando as finanças estão apertadas, como tinha na favela — o que a deixa apreensiva. Lá, ela contava com "amigas-irmãs" e um projeto social que fornecia cestas básicas, roupas, itens de higiene e atendimento odontológico gratuito para os moradores.
Ainda assim, ela tem encarado com esperança essa nova etapa e já conseguiu matricular as crianças em escolas da região, para a felicidade da filha mais nova, que estava animada para fazer amigos.
"Eu aprendi assim com a minha avó: quem faz o lugar é você. Onde eu estiver, se eu estiver com as minhas filhas, tiver o alimento delas, tiver um teto para elas dormirem, para mim está tudo bem. Eu consigo me adaptar em qualquer lugar", disse Francisca.
Área de serviço da casa nova de Francisca, na Zona Leste de SP
Renata Bitar/g1
O aspecto financeiro também pesou para que o entregador Ângelo Batista, de 27 anos, se mudasse com os filhos gêmeos e dois gatos para longe do Centro. Criado no Moinho desde pequeno, ele enfrentou incêndios e, mais recentemente, uma infestação de escorpiões no barraco que foi passado para ele pela mãe.
"Aqui está bem melhor do que lá. Minha preocupação era escorpião que tinha muito onde eu morava. Aparecia no sofá, no banheiro... A minha mãe pegou quatro incêndios lá, perdeu móveis, perdeu tudo. A gente foi morar debaixo da ponte quando era criança, aí depois conseguiu de novo o barraco, conseguiu as doações de novo, os móveis", contou.
O medo de incêndios também foi um ponto mencionado por Francisca, que agora é vizinha de Ângelo. Segundo ela, a fiação precária já levou a uma série de ocorrências do tipo na favela.
Antes mesmo de se mudar para o apartamento na Cidade Líder, Ângelo matriculou os filhos na escola nova e os inscreveu em projetos sociais da região. Com a agenda já preenchida, os gêmeos estão animados com a novidade de terem um quarto separado do pai. Assim como os gatos da família, eles também seguem que seguem na fase de explorar o território desconhecido.
"Eu tinha escolhido [ficar] lá no Brás. Só que o condomínio ia ficar mais caro para mim e ainda estava construindo, ia ter que ficar no auxílio-aluguel. Mas como eu tenho os meninos e um salário mínimo só, preferi pegar um lugar com um condomínio mais em conta", disse o rapaz sobre o imóvel financiado pela CDHU.
Resistência e protestos
Protesto na Favela do Moinho.
Reprodução/ TV Globo
Mesmo empolgados com a mudança, tanto Francisca quanto Ângelo entendem que há diferentes realidades dentro do Moinho, o que torna difícil para muitos deixarem a comunidade.
"Eu tenho umas amigas lá que são amigas-irmãs. São mais próximas de mim do que minha própria família. Elas ainda estão lá porque construíram as casinhas delas, então não veem como eu vejo. Eu pagava aluguel, então pagar algo que é para mim é prazeroso. No caso delas, é diferente, porque aquilo ali elas lutaram para conquistar. Tem gente que criou os filhos lá", ponderou a auxiliar de limpeza.
Há vários casos de moradores que afirmam terem pago pela fatia do terreno em que construíram suas casas, uma espécie de compra, ainda que sem validade judicial — uma vez que a área pertence à União, ou seja, ao governo federal.
Nesses casos, o investimento de tempo e dinheiro ao longo de anos, somado ao sentimento de pertencimento à comunidade, intensifica a resistência à desocupação do local.
🔍 A gestão Tarcísio pediu a cessão do terreno para a União, com o objetivo de desocupar a favela e transformá-la num parque. Em resposta, o governo federal informou que o processo de transferência estaria condicionado à garantia do direito à moradia das famílias que vivem no local.
🔍 Na terça-feira (13), no entanto, o governo federal questionou o uso de força policial na desocupação e informou que vai paralisar o processo de cessão da área.
Funcionários da CDHU iniciam remoção de famílias da Favela do Moinho, no Centro de SP, na manhã desta terça-feira (22).
TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Outro motivo é o descontentamento com a proposta apresentada pelo governo do estado, por meio da CDHU. Os moradores afirmam que os imóveis disponibilizados são pequenos para atender famílias de diferentes tamanhos.
Além disso, o financiamento envolve comprometer 20% da renda familiar mensal pelos próximos 30 anos, sendo um investimento a longo prazo.
Nesse cenário, o processo de remoção da favela tem ocorrido sob clima de tensão. Desde abril, há protestos na comunidade, com confrontos entre grupos de moradores e policiais.
"Quando a CDHU entrou lá, ficou muito tensa a situação. Foi polícia junto, invadia, jogava spray de pimenta no povo. Teve um dia que a polícia entrou, e eu não consegui sair de casa. Não fui trabalhar com medo, porque eles passavam na porta gritando: 'Ninguém sai, mãe e crianças fiquem dentro de casa', e a gente não saiu, realmente. Nesse dia, eu passei a noite sentindo uns ataques no meu coração. As meninas nem foram para a escola", relembrou Francisca.
➡️ Segundo a CDHU, a desocupação envolveu o cadastramento da favela e meses de diálogo com a comunidade. "Foram 13 reuniões coletivas, algumas com acompanhamento da Defensoria Pública, advogados destacados pela comunidade, Superintendência do Patrimônio da União e Prefeitura de São Paulo, além de lideranças da comunidade", informou.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública (SSP), as polícias Militar e Civil atuam de forma integrada na região para combater a atuação de organizações criminosas e garantir a segurança da população.
"A SSP reafirma seu compromisso de assegurar que essas ações ocorram de forma segura, pacífica e com total respeito aos direitos dos cidadãos", disse a pasta em nota enviada ao g1.
Governo começa a demolir casas na Favela do Moinho
Na segunda (12), o governo de São Paulo começou a demolir os imóveis já desocupados para evitar novas ocupações, provocando uma nova onda de protestos, que chegaram a paralisar a circulação das linhas 7-Rubi e 8-Diamante, de trens, que passam no entorno da comunidade.
Infiltração do crime organizado
Uma investigação conjunta de Ministério Público, Receita Federal, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal e Ministério do Trabalho e Emprego, realizada entre 2023 e 2024, apontou que a Favela do Moinho abrigava uma base de inteligência da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
Segundo os promotores, o local era equipado com um detector de radiofrequência para ouvir as conversas operacionais da Polícia Militar. Além de utilizado para obter informações antecipadas sobre operações policiais, o equipamento permitia que os criminosos controlassem a comunidade e punissem moradores e até membros da facção que descumprissem regras internas.
A base também seria utilizada como depósito de armas e drogas do crime organizado.